Thiago de Mello ensinou: “Sem a poesia, a humanidade não mudará”
O recado acima foi deixado pelo poeta amazonense, em Belo Horizonte, quando aqui esteve, em 2008, para lançar seu livro Campo de Milagres durante o programa Sempre um Papo. Ensinou ele: “A poesia sozinha, os poemas, todos juntos, não vão salvar o mundo, não vão mudar o caminho da humanidade, mas, sem a poesia, a humanidade não mudará”. Thiago de Mello, o poeta sempre de branco, morreu nessa sexta (14) aos 95 anos.
Mais do que um poeta, era um militante da vida, da floresta e da utopia. Seu poema mais famoso ‘Os Estatutos do Homem’ (leia abaixo ou assista ao vídeo) foi escrito em 1964, em protesto contra a ditadura militar imposta pelo golpe. que duraria 21 um anos, e seus draconianos e sangrentos atos institucionais, desde o primeiro.
O poeta faz palestra no Sempre em Papo, no final dos anos 80, foto Acervo Sempre um Papo
Fez então do poema um “Ato Institucional Permanente”: “Artigo I – Fica decretado que agora vale a verdade. agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira”. Tornou assim um decreto um ato democrático e humano ao contrário dos outros antivida.
Perda de ética e a indiferença
Na palestra que fez no Sempre um Papo há 14 anos, o poeta contou um diálogo com Gabriel García Márquez no qual o escritor colombiano queixava-se da falta de ética generalizada. “Estamos todos nos acostumando com isso”. Thiago de Mello observou a ele que, no Brasil, era pior, porque o costume com a perda da ética estaria se transformando em indiferença.
Disse mais que havia feito, há algum tempo, uma opção serena e profunda entre a utopia e o apocalipse e escolheu a primeira. “Por isso me sinto forte para confiar, cheio de esperança, porque cada companheiro que me ouve vai fazer a sua parte para ajudar a vida, porque a humildade pode vencer a arrogância e a indiferença. A esperança pode vencer o costume fácil e a utopia pode vencer o apocalipse”, profetizou o poeta da floresta.
Encontro emocionante com o ídolo
Com o filho Thiago e o juiz Cássio, o desembargador mineiro Nelson Missias é recebido pelo poeta, em Manaus, Arquivo Pessoal
Veja como foi a repercussão da morte do poeta entre os mineiros. O desembargador Nelson Missias de Morais classificou o dia de ontem como triste pela partida de Thiago de Mello. Lembrou que, há dois anos, teve o privilégio de ser recebido por ele em Manaus. “Fui com o meu filho Thiago, que leva esse nome em homenagem a ele. Foi uma manhã memorável. Uma das maiores emoções da minha vida. Ouvimos histórias lindíssimas do Thiago Mello, relacionadas a sua trajetória de vida, como a sua prisão na ditadura, a sua poesia e, também, sobre alguns dos seus parceiros e amigos, como Pablo Neruda e Carlos Heitor Cony. Gostaria que o meu primeiro filho conhecesse quem inspirou o seu nome”, contou Nelson Missias.
O professor e escritor Itamar de Oliveira fez uma homenagem na linguagem de Thiago de Mello. “O poeta eternamente de branco/Pregando os direitos universais da humanidade/Chegou a BH cavalgando com os herdeiros do professor Edgar/Utopias amazônicas enluaradas de encantamentos. Em tempos de apagões/É hora de poetar com Thiago/É tempo de semear com o poeta/Tudo de bom/Tudo de puro/Que tiraremos do escuro/Para celebrar a luz/Como anunciou o poeta Thiago de Mello”, escreveu, com exclusividade, para este site.
Quando era professor de jornalismo na UFMG, nos anos 80, Itamar dava trabalhos a seus alunos sobre livros e escritores consagrados, como Thiago de Mello e o seu ‘Os Estatutos do Homem’. O secretário de Cultura de Minas, Leônidas José de Oliveira, disse que sentiu saudades do poeta e do músico e compositor Pixinguinha, quando soube da morte de Thiago de Mello. "Sinto falta desses tempos fortes de junção da música e poesia, mostrando a genuína brasilidade. Senti falta e mais nesse centenário da modernidade antropofágica da busca pelo nacional e identitária. Thiago de Mello! Sinto falta de vocês. sobretudo agora. Nos dias atuais do nosso país. Da nossa Cultura, que precisa acreditar em si mesma como potência de alto estima e paz", manifestou o secretário.
Influência no associativismo
O pensamento e o modo de ver o mundo do poeta influenciaram também o campo associativo. Ao se despedir do mandato frente à Associação dos Funcionários Fiscais de Minas (Affemg), no dia 3 último, a então presidente Maria Aparecida Meloni Papá reafirmou essa inspiração. “E na Affemg é assim, como diz o poeta Thiago de Mello, “não tem caminho novo, o que tem de novo é um jeito de caminhar”. Agora, vamos, de mãos dadas, seguir a caminhada com o jeito que a Sara (sucessora) e sua equipe vão nos apontar”, disse Papá, reforçando a unidade da categoria e união de entidades de auditores fiscais. “Portanto, é o nosso jeito novo de caminhar. Desejo que permaneçam assim, e conclamo a todos os colegas, não vamos deixar que nossas entidades se separem, nunca mais!”
Para o promotor de Justiça Enéias Xavier Gomes, ex-presidente da Associação Mineira do Ministério Público (AMMP), “a poesia de Thiago de Mello é dessas que percorrem o caminho de nossas vidas e, simplesmente, ficam eternamente em nossos corações”.
Marca de uma juventude
A jornalista Sulamita Esteliam resgatou em seu Blog ‘A Tal Mineira” um dos mais belos poemas do poeta-ídolo da sua juventude. “Aos 94 anos, completados em 31 de março de 2020, Amadeu Thiago de Mello vive em Manaus, e se ressente de não mais frequentar sua casa na Freguesia do Andirá, às margens do rio de mesmo nome, em Barrerinha, Amazonas. Lá foi fotografado em 2015, durante o banho”.
E reproduziu na íntegra, como copio abaixo, o que ela chamou de seu poema mais famoso, que celebrava meio século. “Os Estatutos do Homem foi escrito em 1964, em protesto contra o Ato Institucional nº 1, da ditadura oriunda do golpe civil-militar que duraria 21 um anos no Brasil”.
Leia ou releia abaixo (ou se quiser assista ao vídeo), o poema “Os Estatutos do Homem”
Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)
Thiago de Mello
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
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