A Ford se foi, e eu com isso?
“Não são apenas os milhares de empregos diretos perdidos. É a afetação da cadeia e do comércio local, e a desestabilização de famílias que pagaram a conta dos incentivos à instalação de tais fábricas. E, agora, em plena pandemia, receberão em contrapartida o desemprego e mais desigualdades”. É o que diz o auditor fiscal da Secretaria da Fazenda de Minas, Marco Túlio da Silva em artigo exclusivo para o Blog do Orion. Confira:
Em 11/01/2021, a Ford comunicou encerramento das atividades nas unidades de Camaçari (BA), Taubaté (SP) e em Horizonte (CE). Mas, e eu com isso?
Para o governo federal, é resultado de questões internas da empresa e, para o mercado, reflexo de incertezas e do elevado custo-Brasil, mantra conhecido e já incluído na conta do brasileiro, por exemplo com as Reformas Trabalhista e Previdenciária e outras medidas neoliberais, o que, para evitar desviar o foco, iremos abstrair de detalhar.
Ford Camaçari, foto divulgação
Daremos aqui outra resposta possível, iniciando por situar o contexto. Afinal, neste mundo não linear, é fundamental entender o contexto.
Investimentos e baixo crescimento
Atualmente, o paradigma automotivo passa por carros elétricos ou híbridos, com elevado índice de tecnologia embarcada, o que requer elevados investimentos e posicionamento estratégico, e o mercado sinaliza que o Brasil não foi escolhido para tais investimentos. Cabe destacar que o governo brasileiro tem sua parcela nessa decisão, afinal os anos seguidos sem crescimento do PIB aniquilou o poder de compra e o mercado interno.
A decisão da Ford tem relação com o posicionamento da Mercedes, que, em dezembro de 2020, fechou a planta industrial de Iracemápolis (SP) e da Audi, que paralisou a produção do A3 em São José dos Pinhais (PR).
A produção e venda de automóveis no Brasil, fortemente dependente do mercado interno, vem sendo reduzida desde 2013, reflexo da política industrial e econômica, ou falta delas, e investimento público tendente a zero. Agora, os fabricantes estrangeiros estão se mexendo para dar respostas aos acionistas, considerado o cenário nacional e internacional.
Segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores – ANFAVEA, o número de automóveis produzidos caíram de 3.700.000 em 2013, para 2.100.000 em 2016, com ligeira recuperação posterior.
Mas as questões locais (elementos elásticos em relação às políticas de estado) são aceleradoras de um posicionamento geoestratégico abordado pelo professor da UFRGS, Rogério Maestri, que explica a questão da Ford enquanto relocalização das unidades fabris.
Para Maestri, atualmente nos países desenvolvidos, o custo dos desempregados (programas sociais etc.) atinge valores altos. Para criar empregos, a solução passa por fechar fábricas com menor robotização e produtividade, e realocar a produção no país-sede, com geração de emprego e renda.
Aniquilamento do poder de compra
Nessa linha, a Ford também recuou em seu posicionamento na Índia, apesar de o contexto nacional por lá ser diferente, com coexistência de fabricantes nacionais, como a Mahindra e Tata Motors. Maestri afirma que a saída da Ford faz parte de movimento relacionado ao nível de desemprego no país-sede da empresa fabricante, ao que acrescentamos a baixa expectativa de demanda interna no Brasil, reflexo, conforme já mencionado, do aniquilamento do poder de compra.
Agrava a situação, o fato de que o Brasil ignorou o fomento a fabricantes nacionais, a ponto de, atualmente, o país se limitar à existência de montadoras estrangeiras. Situado o contexto internacional e nacional, cabe destacar os impactos para o cidadão-contribuinte. Por volta de 2012, o Programa Inovar-Auto (atual Rota 2030) reduziu o Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI na importação, quando o fabricante mantivesse fábrica ou investimentos específicos no Brasil, além de outros benefícios tributários. À época, Audi, BMW, Chery, FCA, Hyundai, Jaguar Land-Rover, Mercedes-Benz e Nissan inauguraram montadoras no Brasil.
O Inovar-Auto fez a indústria automotiva nacional ficar momentaneamente competitiva, ao encarecer a importação. Mas tal competitividade foi marcada pelo protecionismo, sem muito avanço em produtividade, pesquisa, inovação, ou ampliação significativa da cadeia de fornecedores nacionais.
Concessões generosas e guerra fiscal
Aqui, o leitor já pode começar a montar o quebra-cabeça do “e eu com isso”, pois referida competitividade se deu à custa dos brasileiros. O Inovar-Auto concedeu para as empresas estrangeiras incentivos tributários federais que custaram bilhões de reais anuais desde 2012, sem aferição de contrapartida, conforme relatório da Controladoria Geral da União (CGU), isso acrescido a benefícios concedidos em relação a tributos estaduais dentro da denominada ‘guerra fiscal’ e sempre ao argumento de que tais empresas gerariam milhares de emprego por décadas, afinal uma planta industrial não seria desativada após vultosos gastos para implantação.
Ocorre que, para se beneficiar do incentivo tributário, os fabricantes de veículos fizeram investimentos valendo-se de bilhões em empréstimos concedidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES). Então, novamente, o dinheiro saiu foi do bolso do brasileiro. Investir no Brasil não é para amadores e, quanto a ser difícil e arriscado, só mesmo para os pequenos.
Cabe destacar que, enquanto para o cidadão que recebe benefício federal no valor de algumas centenas de reais (Bolsa Família ou Auxílio Emergencial, por exemplo), a despesa é prevista no orçamento, com gasto analisado e aprovado pelo Congresso Nacional. Os gastos tributários como o Inovar-Auto, geralmente perenes, não estão sujeitos ao teto de gastos e é bem difícil para a sociedade, e até para os órgãos de controle, a identificação e avaliação do custo X benefício, conforme já manifestou a CGU.
Voltando à indagação do título, não são apenas os milhares de empregos diretos perdidos, é a afetação da cadeia e do comércio local, e a desestabilização de famílias que pagaram a conta dos incentivos à instalação de tais fábricas e, agora, em plena pandemia, receberão em contrapartida o desemprego e mais desigualdades.
Marco Túlio da Silva, auditor fiscal da Secretaria de Estado da Fazenda de Minas Gerais
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